Quando perder é ganhar

O Seguimento é tema central em todos os evangelhos, ou seja, “fazer o caminho” com Jesus, identificando-se com Ele na entrega aos outros, sem buscar para si poder ou glória. Ao longo de todo seu escrito, Marcos manifesta uma prevenção especial frente a qualquer ideia de um messianismo triunfalista, centrado no poder e na glória. O caminho do Messias – repetirá diversas vezes – passa pela entrega e pela cruz. Os discípulos, pelo contrário, aparecem obcecados, “surdos e cegos”, discutindo habitualmente por questões de poder, de importância e de privilégio, enquanto que Jesus lhes fala de serviço e doação.

Neste sentido, é sumamente significativo o contraste que Marcos apresenta, intencionalmente, entre o caminho de Jesus e o caminho dos discípulos: nos três anúncios da paixão, quando Jesus lhes fala de seu caminho de entrega, eles manifestam uma clara resistência. O choque é grande: Jesus e seus discípulos caminham em direções diametralmente opostas: o caminho serviço X o caminho da ambição. Mas, para Jesus, trata-se de uma questão não negociável: seu caminho reflete o “pensamento de Deus”. A vontade do Pai nunca passará pelo caminho do poder sobre os outros, senão pelo caminho do serviço.

Neste evangelho, a divergência entre ambos caminhos fica explicitada tanto na reação de Pedro como na resposta dura de Jesus. O caminho dos discípulos reflete os mecanismos próprios do ego, que não busca outra coisa a não ser a autoafirmação a qualquer preço, apegando-se ao ter, ao poder e ao aparentar, ao mesmo tempo que foge de tudo o que soa a desapego e entrega.

Para o ego, a entrega desinteressada é uma loucura, que é preciso evitar a todo custo. Para Jesus, pelo contrário, o impulso do ego se opõe frontalmente a Deus. A resposta de Jesus a Pedro é a mesma que Ele deu ao diabo nas tentações; nem aos fariseus, nem aos letrados, nem aos sacerdotes dirige Jesus palavras tão duras. Quer com isso indicar que a proposta de Pedro era a grande tentação, também para Jesus. A verdadeira tentação não vem de fora, mas de dentro. O difícil não é vencê-la, mas desmascará-la e tomar consciência de que ela é a que pode arruinar a Vida.

Pedro é “Satanás” na medida em que espera que Jesus siga o caminho do messianismo convencional, glorioso, vencedor dos inimigos do povo, que estabelece seu próprio reinado, e não aceita o caminho que Jesus começa a propor, o do serviço que acaba na cruz.  Mas Jesus não rejeita Pedro e nem pede a ele simplesmente que se vá ou se afaste (costuma-se traduzir por “aparta-te de mim…”). Diz-lhe “põe-te detrás de mim”; a mesma expressão que utiliza no versículo seguinte: “se alguém quiser vir atrás de mim…”. Ou seja, Jesus está repropondo a Pedro e aos discípulos o seguimento e que se ponham atrás d’Ele, agora que o caminho vai passar pela cruz.

E aqui vem a frase que fecha, como chave de ouro, toda a cena: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga”. Uma consideração superficial destas palavras deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que preconizava a dor e a negação da própria vida e da própria identidade. Jesus vive na sabedoria de onde brota a fidelidade. Não vive para o ego, que busca sempre seu interesse e comodidade, mas está ancorado naquela identidade profunda, na qual permite que a Vida flua, numa atitude de serviço ou de entrega sábia.

Aquele que quer salvar seu ego, perde a Vida, porque se fecha numa jaula estreita e se introduz em um labirinto de inevitável sofrimento e, em último termo, de vazio e sem-sentido. Uma existência egocentrada, embora aparentemente satisfatória para o ego, não pode evitar uma sensação de profunda insatisfação.

Todos os caminhos autênticos de espiritualidade começam por um esvaziamento do ego, uma renúncia de si mesmo, não para negar-se como pessoa, mas, pelo contrário, para crescer ao recuperar sua verdadeira identidade na totalidade. Quando “eu me perco”, então me encontro; quando meu ego diminui, descubro que faço parte de algo maior, que pertenço a Deus. A “renúncia a si mesmo”, que Jesus propõe, não é um exercício de masoquismo, mas uma maneira mais profunda de realização humana.

Portanto, a expressão “renunciar a si mesmo” faz referência ao nosso falso “eu”, aquilo que, iludidos, acreditamos ser: o “eu” que busca poder, prestígio, riqueza… O desapego do falso “eu” é imprescindível para poder entrar no caminho de vida que Jesus propõe.

“Renunciar a si mesmo” é não se reduzir ao eu superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do eu, tomamos consciência de nossa identidade mais profunda, a vida que somos.

 Essa é a Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele estava identificado (“Eu sou a Vida”) e que buscava despertar em todos os seus seguidores(as). O ego compara-se com os outros e compete pelos elogios e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pelo dinheiro. É isso que nos torna invejosos, ciumentos e ressentidos em relação aos outros. Também é isso que nos torna hipócritas, dominados pela duplicidade e pela desonestidade.

Aquele que não é capaz de superar o “ego” e nem da centralidade em si mesmo), frustra toda sua existência; mas, aquele que, superando o egocentrismo, descobre seu verdadeiro ser “des-centrado e oblativo”, vivendo em favor dos outros, dará pleno sentido a toda sua vida e alcançará sua verdadeira plenitude humana. Precisamos reconhecer que, aquilo que para nosso ego é “perda” e perigo, para nosso Eu verdadeiro é ganho profundo e libertação.

“Renunciar a nós mesmos” não é cair em um automenosprezo, nem anulação daquilo que somos, mas  descobrir que há valores que estão mais além de nós mesmos. É tomar consciência que há recursos e capacidades superiores pelos quais vale a pena investir a vida, assumindo as consequências.

“Tome sua cruz e me siga”: tampouco Jesus quer apresentar-nos um cristianismo e um seguimento doloroso. A verdadeira cruz do cristão não está no sofrimento, não está na dor de privar-nos de tudo, não está nas penitências e sacrifícios… A verdadeira cruz do seguimento de Jesus é a da fidelidade ao evangelho, ao amor, ao compromisso, à própria vocação de serviço.

A cruz do cristão não pode ser outra que a Cruz do mesmo Jesus. Ele nunca amou a cruz como cruz. Mas tampouco fugiu dela por manter-se fiel ao Reino e ao Evangelho que anunciou. Ele nunca amou a dor pela dor, ao contrário, sempre buscou aliviar a dor dos outros. Mas tampouco fugiu, negando sua própria verdade, sua própria missão e sua própria identidade.

A cruz para todo(a) seguidor(a) nunca pode ser uma meta; ela é sempre uma consequência. A cruz para o cristão não é algo que se busca, mas uma realidade que chega a partir de fora, como consequência da verdade e da autenticidade evangélica.

Texto bíblico:  Mc. 8,27-35

Na oração: nosso coração se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está enraizado na identidade do próprio Jesus (“quem sou eu para vocês?”).

A contemplação de Jesus é também revelação do eu “escondido com Cristo em Deus” (Col. 3), ou seja, revelação da verdade do meu eu profundo, onde descubro os traços de minha própria fisionomia.

Não posso responder a essa pergunta – “Quem é Jesus para mim” – se não me pergunto ao mesmo tempo: “Quem sou eu, diante do Senhor”? Sem identificação não haverá um encontro profundo com o Senhor. O encontro comigo mesmo me aproxima do encontro com o Senhor e o encontro com o Senhor revela minha própria identidade.

– Sua vida cotidiana: descentrada? Oblativa? Aberta ao diferente?… Ou: autocentrada, “buscando o próprio amor, querer e interesse”?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

 

Fonte:https://catequesehoje.org.br

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