“Meu Reino não é deste mundo”

“Donde se segue, sem dúvida nenhuma, que quem reza pedindo a vinda do reino de Deus pede – justamente por já ter em si um início deste reino – que ele desponte, dê frutos e chegue à perfeição”.

 Do Opúsculo sobre a Oração, de Orígenes, presbítero (Séc. III).

 

A Igreja Católica celebra neste domingo a grande festa de Cristo Rei do Universo, também encerra solenemente o curso de mais um ano litúrgico.  Mas por que Jesus é Rei? Aparentemente é fácil encontrar uma resposta: “ora, Jesus é Deus, logo só pode ser Rei”. Uma boa resposta e carregada de verdade! Mas podemos encontrar um caminho de construção para compreendermos o reinado de Jesus.

Precisamos retornar ao antigo Israel. Depois da morte de Moisés quem o substitui a frente do povo é Josué, filho de Num da tribo de Efraim, seu fiel servo (Js1,1-5). A missão recebida foi a de introduzir o povo eleito na terra que Deus prometera.  Com a morte de Josué, o papel de liderança do povo passou a ser exercido pelos Juízes. Escolhidos por Deus, sua principal responsabilidade era a de ajudar Israel a conquistar seu direito, isto é, salvar Israel dos inimigos, dos povos vizinhos (Jz2,16ss.). Mas, por causa da corrupção dos Juízes, o povo de Deus decide escolher por um rei humano, assim como acontecia nas nações vizinhas, que iria governar sobre eles e fazer com que fosse exercido a justiça e o direito. Surge o período da monarquia em Israel (1Sm8,1-9). Saul é escolhido como rei de todo o Israel e ungido pelo profeta Samuel. O protagonismo real é alcançado com Davi, responsável pela unificação entre Judá e Israel. Davi foi o maior rei da história de Israel (2Sm5,1ss), seguido por seu filho Salomão (1Rs1,28ss) que construíra o primeiro templo para os judeus em Jerusalém.

Mas, por causa da infidelidade e idolatria dos reis sucessores de Salomão, a consequência é o exílio na Babilônia e a destruição do templo de Jerusalém. Depois da deportação do rei Joaquim em 597a.C (2Rs24,15), o que chama a atenção é perceber que mesmo o povo eleito ficando sem um rei e sem um reino a mediação de Deus e Sua Salvação não foi comprometida na história dos homens! Com a perda da terra a esperança não acaba. Mesmo o povo não possuindo mais a terra, eles tinham a posse da promessa feita por Deus, esperavam por uma terra sem males, terra que jorra leite e mel, terra onde nada falta, terra em que a justiça é exercida para todos. Para os cristãos essa terra é o Reino dos Céus. Jesus é descendente da casa de Davi! Descendência já profetizada pelo profeta Natã à Davi (2Sm7,10-17)! É o Rei esperado que viria libertar o povo, unificar novamente o reino dividido, fazer com que a justiça fosse exercida com fidelidade e responsabilidade, seria um novo Davi para todo o Israel (Lc1,31-33; Mt1,1).

Jesus é Rei! É descendente da casa de Davi, mas o seu reinado não é deste mundo como foi o de Davi. O messianismo introduz a espera no Reino Eterno, a Nova Jerusalém Celeste, onde estaremos ressuscitados com o Cristo! O texto do Evangelho de João (18,33-37) que nos é proposto para a celebração da solene liturgia, nos insere num dramático quadro em que Jesus assume sua condição de Rei diante de Pontius Pilatus. A cena revela o grande mistério de Cristo: “Meu reino não é deste mundo” (Jo 18,36), a realeza que Jesus assume não se assemelha em nada ao sistema real humano já vivenciado em Israel e vivido no Império Romano naquela época. O Reino de Jesus não assenta em esquemas de ambição, de poder, de autoridade, de violência, pelo contrário, a missão real de Jesus é a de dar testemunho da verdade, ou seja, é concretizada no amor, na justiça, no serviço, no perdão, na partilha, no dom da vida! O Reino de Deus surge em oposição aos reinos humanos de injustiças e opressão.

“Quem é da verdade escuta minha voz” (Jo18,37). O termo Verdade é muito importante para o cristão e é carregado de um significado muito valioso! Os Evangelistas sempre trazem Jesus intimamente ligado a verdade: “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo8,32); “eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo14,6). A verdade é a expressão da vontade de Deus a respeito do homem, tal como nos foi transmitida em Jesus. Ele nos ensina a verdade concernente à nossa vida moral, o como agir. Ele é a Verdade que devemos seguir, pois, é verdadeiro Caminho que nos leva ao Pai e nos garante a Vida em abundância. Verdade, além de testemunhar a grandeza de Deus e de seus ensinamentos, se manifesta inseparavelmente da prática da Justiça! Justiça e Verdade estão imbricados!

No livro de Tobias (4,5-6) encontramos um belíssimo ensinamento: “Pratica a justiça todos os dias da tua vida e não andes pelo caminho da injustiça. Pois, se agires conforme a verdade, terás êxito em todas as tuas ações, como todos os que praticam a justiça”. O termo em hebraico, transliterado para o alfabeto latino, usado para se referir à “justiça” é ‘TSêDeK’; já o termo usado para designar “aquele que pratica a justiça” é ‘TSeDaKáH’, identificamos que a raiz da palavra é a mesma ‘TSD’, mas o significado é muito diferente! Traduzimos o termo ‘TSeDaKáH’ para o português como “esmola”, mas esta tradução não carrega a essência original da palavra! Quem doa esmolas, geralmente, doa aquilo que sobra em seu bolso, uma pequena quantia. Mas quem pratica a ‘TSeDaKáH’, distribui seus bens para os mais necessitados! Continuando a leitura do livro de Tobias (4,8) ele diz: “Regula tua esmola (‘TSeDaKáH’) segundo a abundância de teus bens: se tens muito, dá mais; se tens pouco, dá menos, mas não tenhas receio de dar esmola (‘TSeDaKáH’)”. Só permanece na verdade quem pratica a justiça! Somente quem é capaz de partilhar dos seus bens, é capaz de ouvir a voz suave de Jesus Rei do Universo! “Quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus” (Jo3,21).

Ao encerrarmos mais um ano litúrgico nossa esperança se renova! O que deve nos interessar para continuar nossa caminhada e iniciar um novo processo de vida e transformação deve ser, unicamente, o de testemunhar essa mesma verdade em nossas vidas! Testemunho do amor, da solidariedade para com os pobres e marginalizados! Devemos preocupar-nos com serviço simples e humilde à criação, do que aos privilégios e honrarias oferecidos pelos poderosos do mundo! Que com o auxílio da Virgem Maria, possamos apostar mais na partilha, no dom da vida e na fraternidade, esta é a lógica da realeza que Jesus apresentou diante de Pilatos! Coragem! É este o testemunho da verdade!

 

 

Lucas André Pereira da Silva -Seminarista da Diocese de Sete Lagoas – MG

Bacharel em Filosofia e estudante de Teologia pelo Instituto de Filosofia e Teologia Dom João Resende Costa – PUC Minas

 

 

 

BÍBLIA DE JERUSALEM. São Paulo: Paulus, 2012.

BRITO, J. R. Êxodo para um encontro: uma interpretação segundo escritores bíblicos e sábios judeus. In: REIMER, Haroldo. Libertação-Liberdade. Novos Olhares: contribuições ao II Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: UCG, 2008.

ZENGER, Erich; et al. Introdução ao Antigo Testamento. Trad. Werner Fuchs. São Paulo: Loyola, 1995.

 

 

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